sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Carruagem 11

Depois há aqueles dias em que viajamos 3 horas num transporte público e o nosso sistema nervoso percebe que não vai ter 3 horas de descanso.
O cenário que me rodeia é rocambolesco. O senhor que viaja atrás de mim faz contas de matemática em surdina. Sem olhar para trás, imagino que estará a corrigir testes ou coisa que o valha. Afinal não. Começa a cantar qualquer coisa imperceptível. Depois percebo que está a ler o jornal em voz alta, atribuindo a merecida musicalidade a cada notícia. Dou-lhe o benefício da idade já avançada, pela inerente forte possibilidade de padecer de uma doença do foro psicológico.
A pessoa que se encontra na minha diagonal à esquerda já falou com pelo menos 4 pessoas ao telemóvel e a cada uma delas explicou detalhadamente onde se encontrava naquele preciso momento. No último telefonema disse que ia ler um livro. A expectativa do seu silêncio deu-me algum ânimo. A senhora efectivamente pegou no Aquilino Ribeiro. Mas depois de não mais de 5 minutos entrou outra passageira, que se sentou à frente da leitora-pouco-convicta. Houve uma troca de olhares e depressa decidiram ser as melhores amigas de infância. Partilham da mesma necessidade aguda de falar, de emitir sons vocais independentemente da lógica, do sentido de oportunidade, do conteúdo da conversa, do interesse que pode ou não ter o tema para o interlocutor. E eis que constato que é muito mais fácil manter uma conversa com um estranho. Temos muito mais para dizer. Podemos começar pelo nosso nascimento e passar por cada acontecimento da nossa vida, de preferência levando os bons acontecimentos a uma experiência quase orgásmica para ouvinte e os maus momentos a um nível dramático ainda desconhecido pela indústria cinematográfica. Enquanto uma fala a outra finge ouvir. Na verdade está a pensar numa história ainda mais fantástica para contar. É que entretanto já não é uma conversa, é uma competição e todos os passageiros jurados atentos.
 A senhora ao meu lado - mas felizmente separada pelo corredor – tem poucas semelhanças com um ser humano contemporâneo. Talvez se encaixe no período paleolítico da história mas em vez do fogo descobriu o telemóvel. Sabemos que tem uma cria, a quem liga de 3 em 3 minutos. O pior é que as chamadas vão abaixo por falta de rede e a filha retribui, o que me tem proporcionado ouvir os melhores ring-tones de que há notícia enquanto a senhora não acerta com a tecla de atender. Já sei que deixou um bolo-rei na cozinha ou no quarto, não se sabe muito bem, “vai lá ver, desembrulha para comerem todos e deixa-me um bocado”. Sei também que tem € 2.500,00 que pretende distribuir por 3 contas-poupança para cada uma das crias. No lugar ao seu lado, devidamente afastado do resto da tralha que impossibilita outro ser de se sentar ali (e mesmo que pudesse o mais certo seria não querer), está um tupperware com um franguinho de churrasco que a senhora até propôs dividir com o “pica”, que como eu sentiu o cheiro da iguaria.
Entra um novo passageiro cujo ar civilizado me dá alguma satisfação. Está ao telemóvel, fala de coisas importantes. Depois de uns minutos de conversa diz “isso é mega difícil”. E repete. E repete.
Estas experiências sociais não me dão saúde.
Tanta classe nesta 1.ª classe.


MM

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

No hope No love No Glory, No happy ending

Tenho uma música de fundo para cada situação e para cada estado de espírito. Não sei se acontece a toda a gente, mas a mim acontece desde sempre. É tão absurdo que acho que nunca comentei com ninguém que tenho um DJ todo tatuado a viver dentro de mim. 
Para dias como o de hoje, o DJ personaliza a letra à minha real situação de merda, faz lá as suas misturas, e põe-me a tocar nos ouvidos, num arranjo fabuloso de Jazz, No fucking hope, No fucking love, No fucking glory, and darling, No fucking happy ending.
Hoje choveu até ao magma. O meu cabelo, ainda pouco convencido de que é definitiva a deserção de 20 cm, não está a conseguir manter a compostura. Olhei-me ao espelho do carro às 5 da tarde e senti uma pontada no peito. Estava em forma de trincha. Da mesma maneira que em muitas alturas seria capaz de matar se tivesse uma arma, naquele momento ainda bem que não tinha uma máquina com o pente zero em riste guardada no porta-luvas. 
Vim para casa cedo, sem ser bem isso que me estava a apetecer. O que me apetecia mesmo era sentar-me ao balcão de um bar vazio, beber 10 shots de tequilla e partilhar com o barman todas as minhas frustrações. Nos filmes funciona. E no fim ainda se consegue um tipo que nos leva a casa e nos manda flores no dia seguinte para o trabalho (porque lhe dissemos exactamente onde trabalhamos e o mais provável é termos mijado à porta no caminho para casa, naquela da irreverência). Dois dias depois convida-nos para jantar e andamos nisto durante 3 meses porque de repente tornámo-nos as mulheres mais inconquistáveis do planeta. 
Tudo porque ele não abusou do nosso estado embriagado naquele fim de tarde para nos pinar fortemente antes de ir à vidinha dele. Se o tivesse feito sentiamo-nos despeitadas, pegávamos no número de telemóvel que ele simpaticamente deixou escrito num guardanapo em cima da mesa da nossa sala e tentávamos marcar o "café-rotunda", aquele em que contornamos pela direita a evidência de sermos umas galdérias que vão para a cama com um desconhecido depois de 10, ai 10, 3 shots de tequilla. Vestimos o nosso ar mais sério e a saia mais comprida (just in case, com ligas) e tentamos demonstrar que aquilo foi uma situação isolada, aliás, a primeira, e que num estado normal e sóbrio não aconteceria, que não somos dessas soltas que levam para casa qualquer um. 
É importante este convívio-pós-coito-fortuito. É que, na verdade, nem temos muita noção da informação que lhe passámos na noite anterior. Se ele souber o nome do nosso cão e vier com outros pormenores, talvez seja preciso um segundo café para consolidar aquela pretendida impressão de que somos finas porcelanas e que terem ido para a cama connosco foi, afinal, o maior feito do próximo século. Nós, pelo contrário, desgraçadamente, não sabemos nada sobre ele. O número dele está gravado no nosso telemóvel com o nome "William" - o nome do bar onde o conhecemos.
Tentarmos sacar alguma informação sobre ele é um terreno minado. Só com muita sorte não ouvimos "mas eu disse-te ontem que sou engenheiro electrotécnico". Por dentro está o nosso DJ a mudar o disco para um "toumacagar moço, toumetãoacagar" em estilo bossa nova, mas por fora temos que fazer aquele sorriso envergonhado, e deixar que ele tome as suas considerações e por fim se sinta miserável por se ter aproveitado da nossa vulnerabilidade. 
Isto é o que eu vejo nos filmes, claro.
Neste momento tenho o DJ a mexer nos clássicos e a atirar-me, não sei bem a que propósito, com um Oh yes, I'm the great pretender...

MM