Depois há
aqueles dias em que viajamos 3 horas num transporte público e o nosso sistema
nervoso percebe que não vai ter 3 horas de descanso.
O cenário que
me rodeia é rocambolesco. O senhor que viaja atrás de mim faz contas de
matemática em surdina. Sem olhar para trás, imagino que estará a corrigir
testes ou coisa que o valha. Afinal não. Começa a cantar qualquer coisa
imperceptível. Depois percebo que está a ler o jornal em voz alta, atribuindo a
merecida musicalidade a cada notícia. Dou-lhe o benefício da idade já avançada,
pela inerente forte possibilidade de padecer de uma doença do foro psicológico.
A pessoa que
se encontra na minha diagonal à esquerda já falou com pelo menos 4 pessoas ao
telemóvel e a cada uma delas explicou detalhadamente onde se encontrava naquele
preciso momento. No último telefonema disse que ia ler um livro. A expectativa
do seu silêncio deu-me algum ânimo. A senhora efectivamente pegou no Aquilino
Ribeiro. Mas depois de não mais de 5 minutos entrou outra passageira, que se
sentou à frente da leitora-pouco-convicta. Houve uma troca de olhares e
depressa decidiram ser as melhores amigas de infância. Partilham da mesma necessidade
aguda de falar, de emitir sons vocais independentemente da lógica, do sentido
de oportunidade, do conteúdo da conversa, do interesse que pode ou não ter o
tema para o interlocutor. E eis que constato que é muito mais fácil manter uma
conversa com um estranho. Temos muito mais para dizer. Podemos começar pelo
nosso nascimento e passar por cada acontecimento da nossa vida, de preferência
levando os bons acontecimentos a uma experiência quase orgásmica para ouvinte e
os maus momentos a um nível dramático ainda desconhecido pela indústria
cinematográfica. Enquanto uma fala a outra finge ouvir. Na verdade está a
pensar numa história ainda mais fantástica para contar. É que entretanto já não
é uma conversa, é uma competição e todos os passageiros jurados atentos.
A senhora ao meu lado - mas felizmente
separada pelo corredor – tem poucas semelhanças com um ser humano
contemporâneo. Talvez se encaixe no período paleolítico da história mas em vez
do fogo descobriu o telemóvel. Sabemos que tem uma cria, a quem liga de 3 em 3
minutos. O pior é que as chamadas vão abaixo por falta de rede e a filha
retribui, o que me tem proporcionado ouvir os melhores ring-tones de que há
notícia enquanto a senhora não acerta com a tecla de atender. Já sei que deixou
um bolo-rei na cozinha ou no quarto, não se sabe muito bem, “vai lá ver,
desembrulha para comerem todos e deixa-me um bocado”. Sei também que tem €
2.500,00 que pretende distribuir por 3 contas-poupança para cada uma das crias.
No lugar ao seu lado, devidamente afastado do resto da tralha que impossibilita
outro ser de se sentar ali (e mesmo que pudesse o mais certo seria não querer),
está um tupperware com um franguinho de churrasco que a senhora até propôs dividir
com o “pica”, que como eu sentiu o cheiro da iguaria.
Entra um novo
passageiro cujo ar civilizado me dá alguma satisfação. Está ao telemóvel, fala
de coisas importantes. Depois de uns minutos de conversa diz “isso é mega
difícil”. E repete. E repete.
Estas
experiências sociais não me dão saúde.
Tanta classe
nesta 1.ª classe.
MM